Prepare-se para uma colherada de história deliciosa. É hora de desmistificar a lenda mais famosa da gastronomia brasileira (e descobrir por que o segredo é tirar o sapato depois de comer).
Quarta? Sábado? Não importa o dia, basta a fumaça da panela de ferro subir para sabermos: é dia de feijoada, o prato que é a própria síntese do Brasil. Cheia, completa, com farofa crocante, couve verdinha e a sagrada laranja fatiada para dar aquele “tapa” na digestão. É simplesmente a minha favorita — e aposto que é a sua também!
Mas, junto com a concha, sempre vem aquela história, contada e recontada: a feijoada teria sido inventada pelos africanos escravizados, que aproveitavam as “partes menos nobres” do porco (orelhas, pés e rabo) descartadas pelos senhores.
Pare tudo! É aí que a história desanda. E vamos te contar por quê.
A Lenda da Cinderela Pobre: Desmontando o Mito
A ideia de que a feijoada é um prato de “restos” é romantizada, mas historicamente insustentável. E os especialistas, como o folclorista Câmara Cascudo, jogam um balde de água fria (ou seria caldo de feijão?) nessa lenda por três motivos:
- Carnes de Porco Eram Caras: Na época, a carne em geral, e as partes do porco em particular, não eram alimentos comuns ou baratos. O aproveitamento máximo do animal era uma prática universal. Ou seja, pés, orelhas e rabos não eram “descartados” para os escravos; eles faziam parte dos hábitos alimentares, inclusive dos portugueses (que faziam feijoadas com carne salgada e defumada).
- A Lógica Religiosa: Como boa parte dos africanos trazidos para o Brasil seguia o Islamismo, que interdita o consumo de carne suína, seria um contrassenso cultural criar um prato icônico justamente com o ingrediente proibido.
- A Origem Épica (e Europeia): Pratos que misturam feijões/leguminosas com carnes de porco são milenares e vêm, na verdade, do berço da Europa — o Mediterrâneo. Nossa feijoada é herdeira direta das tradições de panelas de inverno, como o Cozido de Portugal (que usa feijão branco ou vermelho) e o famoso Cassoulet da França.
A Verdadeira Invenção à Brasileira: Rio de Janeiro, Século XIX
Se a ideia de cozinhar feijão com carne é ancestral e portuguesa, a “feijoada à brasileira” como a conhecemos – rica, com feijão preto, carnes bovinas, linguiça e aqueles acompanhamentos obrigatórios – tem data e local de nascimento mais definidos.
Os historiadores apontam que a combinação luxuosa de feijão preto (nativo da América do Sul, chamado de comaná pelos guaranis) com as carnes e a farinha de mandioca (também nativa e básica no Brasil) foi um toque final da elite nos restaurantes do Rio de Janeiro no século XIX.
A primeira menção conhecida, datando de 1827 no Recife, já anunciava uma “excelente feijoada à brasileira” em um restaurante frequentado pela alta sociedade. Era um prato de festa, complexo e “enriquecido ao extremo”, muito diferente do simples “feijão gordo” ou das papas escuras descritas por viajantes estrangeiros.
Da Mesa ao Livro: O Batismo da Identidade Nacional
A feijoada se popularizou por hotéis e pensões e, no século XX, foi adotada pelos modernistas como um símbolo máximo da nossa identidade nacional.
Escritores como Mário de Andrade e Vinicius de Moraes a imortalizaram em suas obras. O prato se tornou a grande alegoria da nossa antropofagia cultural, aquela capacidade genial de “engolir” as influências de diversas etnias — europeias e africanas — e cuspir algo totalmente novo e brasileiro.
No final das contas, o que importa é o ritual. É a panela de ferro no fogo, a conversa fiada com os amigos, o cheiro de tempero na casa e aquele inevitável momento pós-refeição, eternizado por Vinicius:
“Que prazer mais um corpo pede / Após comido um tal feijão? / — Evidentemente uma rede / E um gato para passar a mão…”
E aí, gostou de saber que a feijoada é um prato ancestral, português de sangue, mas 100% brasileiro de coração? Agora, vá saborear a sua, mas lembre-se de tirar o dia para digerir essa história!
Feijoada prato delicioso, ainda bem que algum dia alguém teve a ideia de misturar estas carnes