09/09/2025 16:05

Goiânia: A Crônica Detalhada do Maior Acidente Radiológico do Mundo e suas Devastadoras Consequências

Maior Acidente Radiológico do Mundo

O ano de 1987 marcou Goiânia para sempre, inscrevendo seu nome na história como o epicentro do maior acidente radiológico do mundo. A tragédia, que ceifou vidas e contaminou centenas, expôs a fragilidade da segurança nuclear e as consequências devastadoras da ignorância diante do invisível perigo da radiação.

O Ponto de Partida: Do Abandono ao Brilho Fatal

A gênese desse desastre reside em uma disputa burocrática entre o Instituto Goiano de Radiologia (IGR) e a Sociedade São Vicente de Paulo (SSVP), culminando na venda do terreno do IGR ao Instituto de Previdência e Assistência do Estado de Goiás (Ipasgo). A mudança de endereço deixou para trás um equipamento radiológico obsoleto, contendo a perigosa cápsula com o isótopo 137 do elemento químico césio (¹³⁷Cs).

Em maio de 1987, a demolição do prédio pelo Ipasgo foi temporariamente interrompida por uma liminar judicial, deixando a estrutura abandonada e vulnerável. Em setembro, dois moradores do Bairro Popular, Roberto dos Santos Alves e Wagner Mota Pereira, invadiram as ruínas em busca de metal para revenda. Encontraram o pesado equipamento radiológico (cerca de 100 kg) e o levaram para a casa de Roberto.

A imprudência selou o destino de muitos. Em sua residência, Roberto e Wagner removeram a proteção de chumbo e perfuraram a placa de lítio, expondo a amostra radioativa: 91 gramas, das quais 19,26 gramas eram puro cloreto de césio. Em seguida, levaram as peças para um ferro-velho pertencente a Devair Alves Ferreira.

O Fascínio Mortal: O Brilho Azul que Anunciava a Tragédia

No dia 18 de setembro de 1987, as peças foram vendidas. Naquela noite, Devair testemunhou um fenômeno hipnotizante: um intenso brilho azul emanava da cápsula. Fascinado, ele começou a compartilhar a “curiosidade luminosa” com parentes, vizinhos e amigos, distribuindo fragmentos da substância letal sem sequer suspeitar do perigo invisível que carregava.

Assim, o maior acidente radiológico do mundo teve início. As partículas de césio, levadas pelo vento, contaminaram o solo, a vegetação e os animais. As pessoas que tiveram contato direto com o elemento se tornaram fontes de irradiação, disseminando a contaminação em hospitais e outros locais públicos.

Os Primeiros Sinais: Náuseas, Vômitos e a Sombra da Morte

Dez dias após o contato inicial, em 28 de setembro, a esposa de Devair, Maria Gabriela, começou a suspeitar da ligação entre os crescentes casos de mal-estar (náuseas, perda de apetite, vômitos, diarreia, fortes dores de cabeça e febre) e o misterioso material que seu marido tanto admirava.

Movida pela intuição e pela preocupação, Maria Gabriela, com a ajuda de Devair e de um funcionário do ferro-velho, Geraldo Guilherme, levou a amostra radioativa à Divisão de Vigilância Sanitária na tarde daquele mesmo dia.

O Alerta Ignorado: A Amostra Letal em uma Cadeira Velha

Ao depositar a amostra sobre uma mesa na recepção, Maria Gabriela alertou o veterinário Paulo, funcionário da Vigilância Sanitária, sobre a natureza perigosa do material, explicando que havia sido retirado de um aparelho radiológico.

Infelizmente, a gravidade da situação não foi imediatamente compreendida. Paulo manteve distância da amostra, deixando-a sobre uma cadeira velha no pátio da instituição. Funcionários curiosos se aproximaram para observar o objeto desconhecido, ignorando o perigo mortal que ele representava.

A Confirmação do Horror: A Radiação Além da Escala

O físico Walter Mendes Ferreira foi acionado pela Vigilância Sanitária para avaliar a cápsula. A leitura inicial do aparelho de medição de radiação foi alarmante: a agulha ultrapassou o limite máximo da escala, indicando níveis de radiação incomensuráveis.

A incredulidade inicial de Walter deu lugar à certeza aterradora após a troca de equipamentos. O Corpo de Bombeiros, ainda alheio à real natureza da ameaça, planejava descartar a amostra no rio Meia-Ponte, sendo interrompido aos gritos por Walter, que finalmente revelou a identidade da substância perigosa.

A partir desse momento crítico, a Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) foi notificada, deflagrando o Plano de Emergência Radiológica. Médicos especialistas, pessoal de radioproteção e técnicos de diversas instituições foram mobilizados, e o Hospital Naval Marcílio Dias (HNMD) no Rio de Janeiro, único centro especializado em contaminados por radiação no país, foi colocado em estado de alerta. A Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea) também foi informada sobre a magnitude do acidente.

A Contenção: Uma Luta Contra o Invisível

As fases de contenção tiveram início no próprio prédio da Vigilância Sanitária, com a fonte radioativa e a cadeira contaminada sendo cimentadas para reduzir a dose letal no local.

No Estádio Olímpico, um centro de triagem radiológica foi estabelecido para identificar pessoas contaminadas e prestar atendimento emergencial.

Um total de 113 mil pessoas foram monitoradas, das quais 120 apresentaram contaminação externa e/ou interna, com 22 casos de superexposição. As vítimas foram inicialmente encaminhadas para o Hospital de Doenças Tropicais (HDT) de Goiânia, mas 11 pacientes em estado grave foram transferidos para o HNMD no Rio de Janeiro.

Os radioacidentados receberam tratamento seguindo normas internacionais de descontaminação, isolamento e terapêutica, incluindo banhos mornos, uso de ácido acético, aplicação de dióxido de titânio com lanolina, métodos abrasivos para descontaminação da pele e resinas de troca iônica. Medicamentos como o ferrocianeto férrico (Azul da Prússia) e diuréticos foram utilizados para auxiliar na eliminação do césio-137 do organismo, juntamente com a ingestão de grandes quantidades de líquidos ricos em potássio.

A descontaminação da cidade, liderada pelo Consórcio Rodoviário Intermunicipal (Crisa) sob a supervisão da Cnen, envolveu um rastreamento radiológico aéreo e terrestre detalhado. Foram monitorados 67 km² de área, identificando 42 sítios contaminados, com foco nas residências de Devair e Maria Gabriela, nos ferros-velhos e na própria Vigilância Sanitária.

As técnicas de descontaminação incluíram lavagens, aplicação de ácido misturado com Azul da Prússia e aspiradores de alta eficiência. Objetos e áreas que não puderam ser descontaminados foram considerados rejeitos radioativos, levando à demolição de construções, corte de árvores e remoção e substituição do solo contaminado. Em áreas críticas, como os ferros-velhos, o solo recebeu camadas adicionais de areia e concreto.

O Legado Tóxico: A Criação de uma Nova Cidade para os Rejeitos

A grande quantidade de rejeitos radioativos gerados exigiu um plano de gerenciamento complexo. A escolha do local para a deposição provisória enfrentou forte resistência política e social. A chegada dos caminhões carregados com tambores radioativos foi recebida com hostilidade pela população local, ciente do perigo e do longo período de contaminação (estimados 300 anos).

Em 1995, o município de Abadia de Goiás foi criado para abrigar, em definitivo, os rejeitos radioativos no Parque Estadual Telma Ortegal. A própria bandeira do município carrega o símbolo da radioatividade, um lembrete constante da tragédia.

As Vítimas: Rostos na História

Os dados oficiais do Governo de Goiás apontam quatro vítimas fatais da exposição aguda ao césio-137: Maria Gabriela Ferreira, Leide das Neves Ferreira (sobrinha de Devair), Israel Baptista dos Santos e Admilson Alves de Souza (funcionários de Devair).

Leide, que faleceu aos seis anos de idade, tornou-se um símbolo trágico do acidente e empresta seu nome ao Centro Estadual de Assistência aos Radioacidentados Leide das Neves (Cara), que monitora os contaminados até hoje.

No entanto, a Associação de Vítimas do Césio-137 (AVCésio) e o Ministério Público de Goiás contestam os números oficiais, estimando um total de 66 óbitos e cerca de 1,4 mil pessoas contaminadas ao longo dos anos.

O Césio-137: Um Isótopo com Dupla Face

O césio-137, um dos mais de 50 isótopos do elemento césio, é produzido em reações de fissão nuclear. Apesar de sua periculosidade, possui aplicações benéficas, sendo utilizado como fonte de raios gama na inativação de câncer, esterilização industrial e conservação de alimentos.

Contudo, a exposição desprotegida aos raios gama é extremamente perigosa, pois sua interação com os componentes do organismo causa a ionização de moléculas, levando a sintomas como náuseas, vômitos, diarreia, tonturas, queimaduras e, em casos graves, a morte. Sem tratamento adequado, o césio-137 possui uma meia-vida de 70 dias no corpo humano.

O acidente com o césio-137 em Goiânia serve como um alerta sombrio sobre os perigos da negligência e da ignorância em relação a materiais radioativos. A história dessa tragédia, a maior do mundo em sua categoria, ressalta a importância de protocolos de segurança rigorosos, da informação e da responsabilidade na manipulação de substâncias perigosas, para que o brilho azul do césio jamais volte a anunciar a dor e a morte.

Foto de Thiago Igor

Thiago Igor

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